quarta-feira, 21 de outubro de 2009

70 MILHÕES BEBEM NO BRASIL

No Brasil, quase 70 milhões de homens e mulheres bebem. Incluem-se aí desde as pessoas que tomam uma única dose de álcool ao longo de um ano até os dependentes pesados, que não vivem sem a bebida. Entre os dois extremos, existe um grupo que, até pouco tempo atrás, não aparecia nas estatísticas nem nas preocupações médicas: os bebedores de risco. É grande a probabilidade de você, leitor, ser um deles. Estima-se que os bebedores de risco somem 30 milhões de brasileiros.

Aparentemente, são pessoas que mantêm uma relação tranquila com a bebida. Vez por outra, cometem alguns deslizes, mas nada que desperte muita atenção ou faça soar o alarme de que um hábito agradável começa a degenerar em vício. Quem já não dirigiu depois de um jantar regado a um bom vinho? Quem já não tomou alguns copos de cerveja durante um tratamento de saúde à base de antibióticos? Quem já não curtiu uma ressaca tão forte que perdeu o dia na escola ou no trabalho? Pergunte a um bebedor de risco como é a sua relação com o álcool e ele certamente dirá que bebe apenas socialmente. 

Mas o limite que separa esse tipo de bebedor do abismo é muito tênue. Metade deles está à beira do alcoolismo. Os bebedores só não ultrapassarão a fronteira entre o abuso e a dependência se operarem mudanças em relação ao hábito de beber. Resume a psiquiatra Camila Magalhães Silveira, do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool: "Cuidar desses pacientes significa, no fundo, prevenir o aparecimento do alcoólatra".

Essa abordagem é totalmente inovadora no tratamento do alcoolismo. É um extraordinário avanço o reconhecimento de que existe um processo indolor, uma progressão em terreno inofensivo que conduz lentamente ao alcoolismo patológico. Seu corolário é a noção de que essa fase crônica pode ser diagnosticada e interrompida para que a pessoa um dia possa recuperar a capacidade de desfrutar a bebida sem maiores riscos. Até a década passada, os especialistas preocupavam-se, sobretudo, com as pessoas já na fase da dependência, quando a luta contra o álcool é muito mais difícil de ser vencida e a abstinência total e permanente é a única chance de controle da doença. Para os bebedores de risco, porém, a abstinência não é necessariamente o objetivo a ser alcançado. Isso porque eles ainda não desenvolveram dependência física do álcool. Os bebedores de risco podem passar dias sem tomar uma cerveja, uma taça de vinho ou algumas doses de uísque. Mas para eles a bebida tem um significado psicológico muito positivo. Ela lhes dá prazer, mas, principalmente, maior autoconfiança. Necessária, sim. Mas não imprescindível. São incapazes de divertir-se ou ficar à vontade numa roda sem esvaziar um copo. 

Os estudos mais recentes sobre os efeitos do álcool no organismo mostram que muitos desses homens e mulheres podem continuar desfrutando o que julgam ser os efeitos benéficos da bebida sem enveredar sem volta pelo caminho do alcoolismo. Para isso é fundamental que tomem cons-ciência do grau de risco a que estão se expondo e aprendam a quebrar o padrão de comportamento associado ao álcool. A ajuda que os médicos podem dar aos bebedores constantes não viciados é a "redução de danos". Aderir a ela implica reduzir a quantidade e a frequência com que a pessoa bebe sem obrigá-la à privação total.

É surpreendente ouvir de um médico que alguém que já tenha tido problemas com o álcool possa tomar um drinque de vez em quando, sem o risco de uma recaída. Aos alcoólatras recuperados, o primeiro gole é terminantemente proibido. Isso não vale, porém, para os bebedores de risco, porque eles ainda não caíram nas engrenagens cerebrais inescapáveis que produzem o vício. A principal ação do álcool no cérebro concentra-se em dois neurotransmissores – a dopamina e o GABA. Responsável pela sensação de prazer, a dopamina vai às alturas na presença de álcool. O GABA, por sua vez, um tranquilizante produzido no cérebro, tem seus níveis reduzidos pela bebida. Com a dopamina no alto e o GABA em baixa, o registro na memória da satisfação proporcionada pelo álcool é muito intenso, o que faz com que o cérebro queira repeti-la. Está aberto o alçapão do vício. É na borda dele que se equilibram os bebedores de risco. Eles não estão condenados a cair no abismo. 

Os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, os prestigiosos NIH, sugerem alguns passos vitais para o bebedor de risco controlar a bebida e não deixar que ela o controle:

• Estipular uma meta máxima de doses por dia – o ideal é que ela não extrapole uma dose para as mulheres e duas para os homens. 

• Evitar beber em casa ou sozinho. 

• Dar uma hora de intervalo entre uma dose e outra de bebida alcoólica e, enquanto isso, tomar refrigerante, água ou suco. 

Diz o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, da Universidade Federal de São Paulo: "Essas mudanças de hábito ajudam o paciente a beber quantidades menores de álcool e a incorrer menos frequentemente em comportamentos prejudiciais à vida dele".

De cada dois bebedores de risco, no entanto, um precisa de ajuda extra para controlar o consumo de álcool. Para eles, a medicina tem boas-novas. Lançado na década de 70, o relaxante muscular Baclofen passou a ser estudado para o controle do consumo de álcool. O remédio age em uma das mais determinantes substâncias associadas ao vício, o neurotransmissor GABA, simulando a ação do álcool (veja o quadro). O uso do baclofen contra o abuso de álcool nasceu de uma experiência pessoal de um médico francês. 

Apesar do sucesso obtido por Ameisen, o uso do medicamento para o controle do consumo de álcool ainda não obteve aprovação das autoridades mundiais de saúde. Mesmo assim, alguns médicos vêm recorrendo ao remédio na tentativa de livrar seus pacientes dos perigos da bebida. Os resultados mais promissores foram produzidos por experiências realizadas em ratos. Para que o Baclofen possa ser prescrito para bebedores de risco ou alcoólatras, é preciso ainda determinar com pesquisas mais amplas – com pelo menos 3 000 voluntários – as doses de segurança do medicamento. Dosagens acima de 30 miligramas por dia podem levar a problemas respiratórios e quadros severos de fraqueza muscular. Um trabalho da Escola de Medicina da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, mostrou que apenas 30 miligramas diários do Baclofen não têm o efeito antibebida observado pelo cardiologista Olivier Ameisen com suas doses de 50 miligramas. Um estudo recente feito pela Faculdade de Medicina da Universidade do Chile mostra que os efeitos antibebida do Baclofen são notáveis quando a droga é ingerida na proporção de 1 miligrama por quilo de peso. 

A presença crescente de mulheres classificadas como bebedoras de risco é um fenômeno que vem preocupando as autoridades de saúde. Na última década, houve um aumento de 50% no número de mulheres que se encaixam nesse perfil. Entre os homens, o crescimento foi de 30%. "Se o quadro não mudar, em breve elas devem superar os homens nas estatísticas do alcoolismo", diz o psiquiatra Ronaldo Laranjeira. O fenômeno fez disparar o alarme na Associação Americana de Psiquiatria. As conclusões serão publicadas na próxima edição de seu guia, o Manual de Diagnóstico e Estatística de Distúrbios Mentais (DSM-V), com previsão de lançamento para 2012. A instituição formou um grupo de pesquisadores internacionais para estudar a possibilidade de criar parâmetros específicos para avaliar o abuso e o vício do álcool entre o sexo feminino. Há diferenças cruciais no modo como homens e mulheres se relacionam com a bebida. Como regra geral, elas passam a beber descontroladamente para, como se diz popularmente, "afogar as mágoas" de amores perdidos. As mulheres buscam consolo emocional na bebida e mais comumente do que os homens bebem em casa quando se sentem solitárias. Eles, como é de supor, começam a beber por diversão ou pela emulação do comportamento dos colegas nos bares. Os efeitos da bebida são mais devastadores para o sexo feminino do que para o masculino. 

As doenças decorrentes do alcoolismo matam proporcionalmente duas vezes mais mulheres do que homens alcoólatras. Entre elas, os estragos à saúde provocados pelo vício da bebida costumam aparecer dez anos antes do que entre eles. O álcool é metabolizado no fígado e no estômago pela enzima ADH (álcool desidrogenase). Por uma determinação genética, o organismo das mulheres secreta menos ADH do que o dos homens. Como resultado disso, com a mesma dose de bebida, a quantidade de álcool na corrente sanguínea delas é sempre maior do que na deles. Aumenta a fragilidade da mulher à bebida o fato de os tecidos do corpo feminino serem formados com menos água (-20%) e mais gordura (+11%) do que os do organismo masculino. Essa combinação é uma armadilha para a mulher. Com menor concentração de água, o álcool dilui-se menos e, com mais gordura, ele se mantém por mais tempo no organismo delas. 

Um dos fatores que contribuíram para aumentar o número de mulheres com problemas com o álcool é a preocupação exagerada com a estética. Muitas lançam mão da bebida para substituir a comida e, assim, perder peso. Estima-se que 27% das mulheres adultas que abusam do álcool façam isso. Os americanos criaram inclusive um termo para classificá-las: drunkorexic (anorexia alcoólica, em português). Essas mulheres passam o dia em jejum a fim de controlar as calorias e, depois, abusam do álcool para aliviar a ansiedade e aplacar a fome. O álcool de fato sacia – e não só pelas calorias. Ao entrar no organismo, ele irrita a parede do estômago e dos intestinos, desenca-dean-do um processo inflamatório. A inflamação, por seu turno, estimula a produção da leptina, enzima que na mucosa gástrica do aparelho digestivo é responsável pela sensação de saciedade. 

O grande desafio da medicina é fazer com que os bebedores de risco se reconheçam como tais e procurem ajuda. Diz o psiquiatra André Malbergier, do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo: "Na maioria das vezes, eles consomem aquela quantidade de álcool aceita socialmente e só chegam aos consultórios quando o álcool ataca a saúde, provocando gastrite e dor de cabeça crônica". Teremos cumprido nosso objetivo se ao acabar de ler esta reportagem você se reconhecer como um bebedor de risco e isso levá-lo ou levá-la a procurar ajuda profissional. Saúde! 

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