segunda-feira, 29 de março de 2010

Toma que o filho é teu



Há poucos dias ouvi uma verdade e um mito sobre dependência de drogas. A verdade: a classe média está apavorada com o avanço do vício entre seus filhos e não sabe como protegê-los. Não são apenas a maconha, o ecstasy e a cocaína que estão desestabilizando famílias bem-nascidas. É também o crack, uma droga devastadora que nos últimos anos deixou de ser um problema restrito à cracolândia e exclusivo dos pobres.

O mito: por ser de classe média, essas famílias não precisam se preocupar em saber como funciona o atendimento público aos drogados. Afinal, se um filho necessitar de tratamento não irá buscá-lo no SUS. Esse é um mito pernicioso.

Que tipo de classe média consegue pagar as mensalidades cobradas pelas clínicas particulares onde é possível internar um dependente químico? Os preços variam de acordo com a região do país e a qualidade do serviço prestado. Um mês de internação pode custar de R$ 3 mil a mais de R$ 30 mil.

É um tratamento difícil. Muitas vezes o paciente volta para casa, passa um período bem controlado e depois tem uma recaída. Internações sucessivas tornam a conta impagável.

Se a classe média não está preocupada em saber o que o SUS oferece, é bom começar a se preocupar. Não só porque pode precisar internar alguém da própria família. Mas também porque drogados sem tratamento adequado são uma grave ameaça social.

Um cidadão de classe média pode ter a felicidade de ver seus filhos jovens crescerem longe das drogas. Mas pode viver a tragédia de vê-los se tornar vítimas da violência ou dos acidentes de trânsito provocados pelos drogados.
Mães e pais de jovens viciados estão em total desamparo. Antevêem a tragédia, mas não sabem o que fazer com os filhos. Uma amostra desse desamparo pode ser vista nos olhos do comerciante Carlos Grecchi Nunes nesta entrevista ao Jornal Nacional.
Ele é pai de Carlos Eduardo Sundfeld Nunes, de 24 anos, o assassino confesso do cartunista Glauco. Cadu usava drogas, carrega antecedentes familiares de esquizofrenia (sua mãe sofre da doença) e, há vários meses, dava sinais de perturbação mental.
Apesar disso, Nunes não internou o filho numa clínica psiquiátrica. Suspeito que se tivesse tentado, não teria conseguido. Arranjar uma vaga de internação psiquiátrica nos serviços do SUS é uma epopéia. Nos últimos 20 anos, quase 70% dos leitos psiquiátricos do país foram fechados.
No ano passado, o poeta Ferreira Gullar chamou atenção para o problema. Em entrevista a Época, ele disse: "As famílias, principalmente as que não têm recursos, não têm mais onde pôr seus filhos", diz Gullar. "Eles viram mendigos loucos, mendigos delirantes que podem agredir alguém".
Qual é a raiz da crise atual? O Brasil aprovou em 2001 a lei 10.216, que redefiniu o modelo de atenção à saúde mental no país. Ela não proíbe as internações, mas determina que o atendimento dos doentes mentais (e dos drogados) seja realizado preferencialmente em serviços extra-hospitalares.
Na teoria, a mudança seria um avanço. O objetivo seria evitar que os doentes fossem excluídos da sociedade. Evitar que fossem enjaulados em manicômios e esquecidos lá - seminus e dopados como tantas vezes se viu nos anos 70 e 80.
A intenção é boa. Na prática, porém, o Brasil abandonou um modelo de atendimento baseado apenas nos hospitais, mas ainda não foi capaz de criar serviços substitutos adequados e em quantidade compatível com a demanda. E a demanda por tratamento psiquiátrico (principalmente em decorrência do uso de drogas) só cresce. Nas grandes cidades e também nas pequenas.
O quadro atual é fruto de uma escolha política. O Brasil decidiu que os doentes devem ser atendidos nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Nesses locais, o paciente recebe medicação e acompanhamento semanal. Depois volta para casa.
Os Caps-Ad, como são chamados os centros destinados ao atendimento de dependentes de álcool e drogas, não internam pacientes. Muitas vezes, porém, a internação é fundamental para o sucesso do tratamento. Longe do ambiente que o estimula a usar drogas, o paciente é desintoxicado e as crises de abstinência são controladas.
"Os dependentes químicos estão desassistidos no Brasil. Faltam Caps, ambulatórios e vagas para internação em hospitais gerais ou psiquiátricos", diz Marco Antonio Bessa, presidente da Sociedade Paranaense de Psiquiatria e secretário do departamento de dependência química da Associação Brasileira de Psiquiatria.
Você aí, cidadão de classe média, não pense que o convênio médico particular resolverá seu problema caso seu filho se torne viciado em drogas. "Os planos de saúde limitam o tempo de hospitalização do paciente entre 15 a 30 dias por ano. Esgotados esses dias, a classe média vai parar no SUS", diz Bessa.
Sem conseguir vaga, muitas famílias mandam os filhos para as chamadas comunidades terapêuticas. Muitas vezes tudo o que encontram lá é doutrinação religiosa - e não tratamento médico.
A dependência de drogas é um problema nosso - meu e seu. De todo cidadão brasileiro e de todas as esferas de governo. Mas a mensagem que a sociedade sistematicamente dá às famílias dos dependentes é: "Toma que o filho é teu".
Está na hora de assumir que essa é uma batalha nacional, que diz respeito a cada um de nós. Se você não tem um filho dependente hoje, pode ter amanhã. Se tiver a sorte de nunca passar por isso, ainda assim é capaz de se identificar com o desespero dessas famílias. Isso já é suficiente para lutar por uma política de saúde mental condizente com o tamanho da ameaça que o Brasil enfrenta.
Na terça-feira, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) divulgou o resultado de uma fiscalização feita nos Caps do estado de São Paulo. Dos 230 Caps existentes, o Cremesp vistoriou 85 em 2008 e 2009.
A pesquisa revelou que 42% dos Caps não contavam com retaguarda para internação psiquiátrica, no caso de necessidade. Um terço dos Caps fica sem médico em pelo menos um período do dia."Não queremos demonizar a idéia, mas, como aplicação concreta, os Caps estão bastante deficitários", diz o psiquiatra Mauro Aranha, diretor da Câmara Técnica de Saúde Mental do Cremesp.
A maioria dos serviços é de gestão municipal, com financiamento e apoio das três esferas de governo. O Ministério da Saúde diz que vai analisar os dados revelados pela pesquisa.

Cada Caps-Ad foi idealizado para atender um universo de 70 mil habitantes. Sabe quantos psiquiatras foram previstos para trabalhar em cada Caps-Ad? Um.
"Um psiquiatra por Caps-Ad é muito pouco. Para atender os dependentes de álcool e drogas é preciso ter enfermarias psiquiátricas em hospital geral", diz Aranha."O Caps ajuda na parte de reabilitação psicossocial, mas não dá conta de resolver surtos agudos. Não pode, portanto, ser o único serviço disponível para atender dependentes".
No final de 2009, foi regulamentada uma lei que determina que hospitais gerais do SUS tenham vagas de internação em enfermarias psiquiátricas. Os hospitais ainda estão se adequando para cumpri-la. É uma medida que pode ajudar a amenizar o quadro atual. Mas não será suficiente para dar conta do tamanho do desafio que o Brasil tem pela frente. É um desafio pesado. Até quando as famílias dos dependentes vão enfrentá-lo sozinhas?
E você? Conhece alguém que está lutando contra as drogas? Como a família conseguiu tratamento? Conte pra gente. Queremos ouvir a sua história.
Cristiane Segatto

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