Felipe Van Deursen.
Apliquei na minha vida a teoria da
honestidade radical. Afastei-me dos amigos e perdi a vontade de conversar.
Simples. Tudo isso porque somos dependentes da mentira.
Não queria fazer esta reportagem. Achei que
corria o risco de sofrer uma lenta degradação social. Parar de fingir que
atendo o celular para não falar com alguém? Deixar de usar a salvadora
"Não ouvi o telefone tocar"? Era uma enrascada. Mas aceitei, por 2
motivos:
1 - levar uma vida 100% sincera levanta uma
boa discussão sobre nossa relação com a mentira.
2 - eu gosto de aparecer.
Informei-me sobre revistas e livros que já
trataram o assunto (sim, a ideia não é inédita) e decidi passar 50 dias em
função da honestidade radical, prática defendida pelo psicoterapeuta americano
Brad Blanton. "Então é falar o que dá na cabeça?" Não
necessariamente. Basicamente, a proposta é ser sincero consigo mesmo o tempo
inteiro. Só assim se consegue ser com os outros. Ser honesto com seus
sentimentos em relação às atitudes das pessoas que importam à sua volta. E já
aviso para não enganar ninguém: fraquejei algumas vezes. Policiar as próprias
mentiras é perceber a facilidade com que as cuspimos o tempo todo. Mas, ao
reconhecê-las e voltar atrás, você assume erros e se mostra mais, inclusive o
lado pouco louvável. Confessei pequenos pecados do dia a dia, extravasei
inveja, egoísmo, prepotência, manipulação e futilidade. Porque eu minto. Muito.
E quer saber? Você também.
PETULÂNCIA
SINCERA
Por que mentimos tanto? Fomos educados assim.
Desde a infância aprendemos a interpretar papéis no cotidiano. Mentimos para
ser aceitos na turma do futebol, para a professora gostar de nós, para chamar a
atenção da menina mais bonita da escola, para conseguir emprego. Interpretamos
papéis autoimpostos - e lutamos para mantê-los verossímeis. Quando eu queria um
brinquedo mais caro no Natal, puxava papo com minha avó, ouvia-a falar mal do
Collor, concordava com tudo mesmo sem entender e buscava mudar o assunto para
dizer como gostaria de ganhar aquela pista incrível de carrinhos. Bem, posso
dizer que é "o meu jeitinho". A vida é assim, certo? Mas jeitinho é
mentira. E mentira é a maior fonte de estresse e infelicidade do mundo, segundo
Blanton. Ele diz que se todos parassem de usar tantas máscaras as pessoas
teriam mais tempo e vigor para se dedicar a relações honestas. Vivemos o tempo
todo a imagem que queremos ter de nós mesmos e que os outros tenham de nós. Uma
pesquisa realizada nos Estados Unidos diz que 93% dos americanos assumiram que
mentem regularmente. Estamos acostumados a agir assim porque é mais
confortável. E vamos levando.
Percebi a facilidade com que mentia no
terceiro dia. Um clássico: aumentar um conto. Em uma conversa sobre música,
exagerei ao falar "que conheci o movimento punk da Lombardia". Que
bobagem. Não conheci nada, só ouvi um CD largado na casa de um primo nos
arredores de Milão. Nem sequer me dei ao trabalho de checar se o som era mesmo
da Lombardia. A primeira máscara a cair seria a da insegurança cultural. As
pessoas engoliam meu personagem antenado e eclético. E eu sentia necessidade de
manter isso, para mim e para elas, o que produz muitas mentiras como efeito
colateral. "Quando você assume que representa, você assume sua
ignorância", explica Blanton. Ao assumir, fiquei inseguro por sujar minha
pose ("Como assim você ainda não ouviu essa música!?"). Mas senti
alívio. Parei de fazer esse papel e passei a dizer: "Não faço ideia do que
você está falando. Conta mais". Em um almoço com a redação, demonstrei
minha curiosidade ao aprender, por exemplo, que a suposta tartaruga que ajudou Charles
Darwin a criar a teoria da evolução morreu em 2006. Antes, me sentiria mal em
reconhecer que não sabia. Fingiria que conheço o assunto e acenaria com um vago
"pode crer", enquanto caramujos, joaninhas ou huskies siberianos
passeavam no pensamento, lá longe. O problema é que expressões assim não são
saudáveis. O "pode crer" é o açúcar refinado da roda social. Adoça,
mas em excesso faz mal.
O bem-estar me conduziu à prepotência.
Afinal, eu estava me despindo de fantasias mentirosas que usava desde sempre.
Eu falo a verdade, os outros mentem. Logo, sou superior. É o nível 1 da
honestidade radical: revelar fatos sobre você. A súbita sensação de prazer deu
um verniz de legitimidade a explosões grosseiras. "Você é pago para
escrever qualquer lixo que sai da cabeça sem ninguém para questionar",
disse a um amigo temporariamente insatisfeito no emprego. "Não vou
divulgar a pesquisa, isso é um porre", a uma prima que pediu ajuda para
colher respostas para um trabalho de faculdade. "Se você tirar o quebra-mato,
seu carro ficará muito efeminado", a um editor desta revista. Cheguei a
xingar uma colega em um dia de estresse. Estaria perdoado pela sinceridade. Mas
não é assim. Extravasar raiva é um exercício que precisa ser usado a seu favor
(veja mais nos boxes). Falar o que vem à cabeça não faz de mim uma pessoa
necessariamente honesta. O caminho é outro.
DISCUTINDO
A RELAÇÃO
"Você só quer me pegar?", perguntou
uma garota no bar, na lata. "Sim", respondi. "E só quer isso de
mim?", insistiu. "Não. Às vezes tenho vontade de conversar."
Achei que levaria um tapa (que foi o que aconteceu quando uma amiga perguntou o
que eu tinha achado do seu corte novo de cabelo e respondi sem piscar
"Está pronta para o abate"), mas não. Ela queria que fosse algo com
sentimento. Fui sincero. Então não houve nada. Mas não dá para ser direto e
honesto assim sempre na hora de paquerar. Uma pesquisa com universitários
americanos diz que 34% dos homens admitiram mentir para ficar com alguém. E 11%
das mulheres mentem sobre peso em sites de relacionamento, segundo a empresa de
segurança online Symantec. Blanton defende que a honestidade é o caminho da
felicidade em qualquer tipo de relacionamento. Então vamos lá. Outra garota
perguntou, no 10º dia, o que eu faria no feriado. "Nada." "Que
coincidência, eu também." Perguntei se era uma indireta para chamá-la para
sair. "Não, sou eu te chamando para sair, se estiver afim." Fiquei
impaciente e expliquei que a grafia certa é "a fim". "Obrigada,
editor." A conversa acabou. Ela não me procurou mais.
Na 4ª semana, a superioridade virou uma
sensação de estar se despindo em público. Incômodo, mas com certa dose de
liberdade. Bastava não explodir tanto, apenas falar o que sentia e convidar as
pessoas a compartilhar a sinceridade. Dói? Muitas vezes. É claro que falar "Olha,
achava que tínhamos futuro, mas não vejo nada mais do que diversão em você,
ainda gosto de outra" pode ser um caroço de azeitona na garganta. É muito
mais fácil desconversar até que a pessoa desista. Aliás, "não há nada de
errado, estou bem" é a mentira mais contada por mulheres e a segunda mais
usada por homens, segundo o Museu de Ciência de Londres. Quem nunca?
Eu estava chegando ao nível 2 da honestidade
radical: ser sincero com os sentimentos. Mas para isso precisava de mais
dedicação das pessoas à volta. Quando a sinceridade está em via de mão única, é
difícil. No 14º dia, em um bar, disse a uma menina frases do tipo: "Você
tem uma desagradável necessidade de ser descolada" e "Para que
escrever um livro de boatos sobre os outros, procure algo mais digno na
vida". A única reação que tive como resposta foi um clima pesado na mesa e
um olhar de pouco caso dela. Mas, no 22º dia, retomamos a conversa. Ela saiu da
defensiva e tivemos um papo sincero pela primeira vez desde que a conheci. Mas
foi só naquela noite. O casaco de couro, o batom vermelho e a pose blasé
voltaram no dia seguinte. Pelo menos em público.
Ao dizer somente a verdade, você se abraça a
ela porque é o que tem a oferecer. No 8º dia, antes da despedida da banda de
uns amigos, um deles me perguntou sobre seu futuro musical. Ele estava emotivo,
claro. E eu não podia mentir. Demorei alguns instantes para falar o que sentia:
"Você precisa se dedicar mais a se divertir do que a tentar fazer sucesso.
Não deposite nos outros colegas de música sua grande vontade de ser
famoso". Eu me senti um idiota. Poderia ter dado rodeios e amaciado,
falado algo que ele quisesse ouvir. Era o último show, caramba! Mas esse era o
eu desprotegido falando, sentindo falta da manta quente da mentira. Fiquei tão
perdido nesses pensamentos que quase não vi a reação dele: "Sim, você está
certo". Sinceridade às vezes dói mais na gente. E por causa disso podemos
deixar de falar a verdade a quem mais importa.
SOLIDÃO
ANTISSOCIAL
A reta final foi um caminho mais sofrido. Não
aguentava mais me testar e ser testado a todo momento. Não queria mais pedir
que as pessoas repetissem o que estavam falando porque eu não estava prestando
atenção. Não aguentava mais ser encostado na parede. Nove anos de histórias,
brigas e paixões não correspondidas vieram à tona. A maioria das conversas,
reconheço, foi boa. Tive reveladoras discussões com amigos de trabalho,
faculdade e escola, colegas, chefe, chefe do chefe, garçom do bar preferido,
dono do bar preferido. Mas cansa. Demais. Só não discuti a relação com
ex-namorada.
Contabilizei 8 pequenas mentiras no período.
Coisas irrisórias que passariam despercebidas normalmente, como "Não tenho
dinheiro" para o vendedor ambulante da rua, quando na verdade eu tinha.
Tinha a sensação que perdi a necessidade de mentir à toa. Mesmo que me achasse
um pouco antissocial. Os melhores amigos se afastaram por um tempo. Com um
deles cortei a relação de vez ao dizer à sua namorada que a turma inteira
estava melhor longe dele. Passei a sair menos.
Não tinha mais vontade de conversar. Somente
com quem se dispusesse a tentar ser sincero de verdade comigo. O que foi ótimo.
Renovei amizades. No saldo geral, apesar de tudo, ouvi mais elogios que
críticas à minha conduta. Mesmo cansado, estava indo bem, já que Blanton havia
alertado que o processo é lento. Pena que ele não pôde acompanhar o final da
vivência, pois nossa troca de mensagens foi interrompida quando ele foi
supostamente preso durante os protestos do movimento Ocupe Wall Street, nos
EUA. Tudo bem. Já estava bem menos apegado às mentiras fúteis que teimamos em
incorporar no nosso cotidiano. Valorizava mais o que importava. "Acho que
agora acertei", disse minha mãe ao voltar à cozinha e preparar um
macarrão. "Está ótimo", respondi. Sincero.
RAIVA
AMIGA. Como ser feliz em um relacionamento, segundo a
honestidade radical? Engolir a raiva de amigo, marido ou colega, sem expressar
o que se sente de verdade, é fonte de comportamentos ruins, como fofoca e
vingança. Para evitá-los, é preciso expressar a raiva sempre, sem medir
palavras. Brad Blanton explica que essa é a chave para um relacionamento maduro
e sincero. Mas é preciso seguir regras. Veja na página seguinte.
Aprenda
a lidar com sua raiva
Segundo a honestidade radical, sucessivos
ataques de raiva controlada não levam ao desgaste da relação. As explosões é
que enfraquecem, virando pequenos estalos indolores no dia a dia.
Veja como proceder:
1. Diga olho no olho o que exatamente o
deixou com raiva ou o magoou. Não vale dizer "Você sempre faz isso, seu
egoísta". Diga "Eu te odeio porque você foi egoísta ao criar caso por
eu sair sozinha com as minhas amigas".
2. Preste atenção em como seu corpo reage ao
expressar a raiva. Chorar, gritar, tremer. Perceba como essas sensações oscilam
à medida que você fala.
3. Só pare de falar quando se sentir bem o
suficiente para começar a dizer por que você gosta da pessoa. E o processo deve
ser sempre recíproco. Escute e aguente a raiva dela.
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