terça-feira, 27 de julho de 2010

A BARRIGA DOS HOMENS E A NOSSA FÉ

Na média, todos os homens que conheço perseguem, ao longo de suas vidas, uma solução existencial para ao menos duas coisas, além da morte: para a fé e para suas barrigas. Dentre meus colegas de gênero, não há um de quem nunca tenha escapado um comentário insatisfeito sobre sua a fé – ou sobre seu ceticismo – ou sobre sua barriga – e gorduras abdominais e afins. Não há um.

E o que mais põe à prova nossa hombridade, nossa virilidade, ao lidar com a barriga e com a fé, é a nossa submissão a elas duas. Contra a barriga e contra a fé, somos seres impotentes. E pior: as duas têm a ver com a morte. A primeira pode nos levar mais rápido a ela e a outra, define o que será de nós depois do dia D. E não há nada que se possa fazer de imediato. Funciona como se tivessem vida própria. Alimentam-se por conta própria e seguem ali, desafiando o que nos resta de orgulho.

E, digo-vos, só há uma solução para apascentar tal sofrimento masculino. Só há um caminho para confortar no coração do homem a angústia causada pela fé e pela barriga. Só um. Um só.

***

Era uma tarde de meia temperatura na sala da minha casa, em Canoas. Não lembro bem qual era minha idade. Mas posso dizer que me regozijava na mais prazerosa das idades: a idade sem compromissos. Estudava pela manhã, assistia ao Chaves e aguardava o entardecer para jogar uma bola com os amigos que tinha aula à tarde. Essa era, em linhas gerais, minha rotina estafante da época. Mas tinha algo que já me incomodava: a minha barriga. No que um dia, num belo dia, eu resolvi que poria fim a ninguém mais, ninguém menos, que a eles, meus pneuzinhos brancos. Eles que me acompanharam desde sempre. Companheiros de todas as horas e de todos os banhos. Desde a descoberta dos pelos até o fim da puberdade. Poria fim a eles. Minha barriguinha e seus pneuzinhos companheiros seriam eliminados.

E tratei de buscar alternativas.

O Nescau. Tiraria o Nescau da minha vida. E exercícios? Pensei em correr, em caminhar, em jogar mais bola. De algum lugar surgiu a convicção pelo abdominal.

Acontece que eu tinha um aparelho específico para o movimento e almofadinhas e tals. Mas na tal tarde, não usei nada disso. Preferi ir no seco mesmo, ali, no assoalho da sala de casa. Cinquenta abdominais no primeiro dia. Acho que foi esse o número. Cinquenta. Parei porque nem minha coluna, nem minha barriga aguentavam mais. E fui pro espelho. Tive a impressão de ter visto rastros de gordura esvaindo-se pelo suor do meu abdômen. E fiquei satisfeito. Lembro que fiquei bem satisfeito. Nascia ali um novo Juliano.

Mas no dia seguinte, havia algo que não me deixava esquecer de meu propósito um minuto sequer. A dor que tomou meu corpo quase me imobilizava. E a cada passo que dava, a dor repuxava meus músculos na tentativa de me convencer da bobagem que eu tinha cometido ao me propor a perder a barriga. Ela não valia aquela dor. Ninguém dá bola pra ela, oras. Ela nem é tão visível assim, afinal. Pode ficar aí mesmo onde está. Não seria eliminada. Barriga? Que barriga? A dor muscular me levou a desfazer os entusiasmados planos do dia anterior.

Assim é com a minha .

Há três semanas, participei do 140º Cenáculo de Maria da Arquidiocese de Porto Alegre. O Cenáculo é um movimento de jovens e adultos da Igreja Católica que prega a espiritualidade de Maria, a mãe de Jesus Cristo, como forma de vivência da fé. Posso dizer que, em 14 anos de caminhada na Igreja, talvez este retiro tenha sido o mais importante de todos. Talvez não o mais bonito, nem o mais marcante. Mas o mais relevante para minha fé.

Uma das razões que me fazem classificar desta forma o 140º Cenáculo foi a participação de meia dúzia de pessoas especiais entre os mais de 70 jovens e adultos que faziam o retiro pela primeira vez. Refiro-me a cidadãos dependentes químicos em recuperação. Tive a sorte de sentar perto de um durante os três dias e poder ouvir as suas histórias. São uns heróis esses homens e mulheres que vencem a droga! “Vou dormir todos os dias agradecendo pelo dia e acordo todos os dias sabendo que terei que matar alguns leões”, ouvi de um deles no sábado seguinte, quando nos reunimos para conversar a respeito do retiro. Um deles nos contou que tinha emprego em uma multinacional, esposa e filhos. Por causa da bebida, perdeu tudo, a ponto de não ter para onde ir. Perdeu tudo. Ficou sem nada. E reergueu-se. E estava lá, do meu lado naquele retiro, sem nenhuma pinta de herói, mas disposto a servir de exemplo de esperança.

Saem do retiro em vantagens esses cinco ou seis homens, cujas vidas foram atropeladas pelas drogas. Porque com a fé e com aqueles que querem perder suas barrigas, o desafio é o mesmo: alguns leões precisam ser mortos a cada dia.

Costumo dizer que retiros são para a fé assim como feriadões do verão são para o trânsito. Infelizmente, não voltaremos a ver alguns daqueles que pegaram a estrada conosco. É inevitável. Embora tomados pela emoção todos confessem o desejo de mudar de vida e passar a valorizá-la de outra forma, muitos serão vencidos pelos leões da semana seguinte na vida real.

E não são poucos os leões. Eu diria que quase todo dia há um novo leão para enfrentarmos. Não preciso elencar aqui tudo o que nos tira do caminho do bem, como a indiferença, a competição e a vaidade, né?

O que esquecemos é que atrás de nossos leões aguardam por nós pessoas como nós. Pessoas que sofrem porque nunca ninguém chegou até elas e apontou para o lado onde a vida é mais colorida, as possibilidades são variadas e a dignidade é possível. Voltei pra casa depois da missa que encerrou nosso encontro de três dias com uma frase de uma canção na cabeça: “tu, pescador de outros lagos, ânsia eterna de homens que esperam”. São eles, os homens que sofrem atrás dos leões que estão nos aguardando! Numa ânsia eterna, numa angústia interminável.

Por que o 140º Cenáculo de Maria foi tão importante? Porque descobri que, como a morte, há outra coisa certa nessa vida: os leões e a angústia dos homens sempre existirão. E estarão sempre à espera de alguém disposto a transmitir a paz.

Retiro de três dias podem nos levar para o céu, mesmo estando na terra. Mas acabam. As lágrimas evaporam. E se não soubermos lidar com essa avalanche de sensações novas dentro do peito, se não soubermos lidar com as dores musculares de quem quis acabar com a barriga no primeiro dia, se não soubermos lidar com tudo isso, se não formos perseverantes, ficaremos pelo caminho.

***

Só há um caminho para a realização da fé e só há um caminho para o fim da barriguinha indesejável: a perseverança. Para o homem que deseja alcançar uma barriga de tanquinho e para o homem que almeja desfrutar de uma fé robusta, que não dorme satisfeita enquanto não alegra alguém, a receita é uma só: perseverar. Matar alguns leões a cada dia. Sem fraquejar, sem deixar-se levar pela rotina da acomodação, do satisfazer-se com o ter, poder e prazer passageiros das coisas fúteis. Como perder a barriga, por exemplo.

É claro que me incluo no meio de vocês, como mais um que precisa aprender a matar seus leões. Três semanas depois do 140º Cenáculo de Maria e alguns anos depois daquela tarde de abdominais, no meu peito ainda mora a angústia pela barriga que não perdi e pela fé cuja chama preciso aprender a manter acesa todos os dias.

Juliano Rigatti, Twitter @uzina e @toquecristao, e-mail jfrigatti@gmail.com.

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