sábado, 4 de janeiro de 2014

A VIDA NÃO DESISTE

Numa dessas frescas manhãs de verão, quando desci para apanhar o jornal, fiel companheiro matinal, minha vista foi assaltada por o mar dourado que invadia a rua. O sol gigante amarelo nascia no horizonte. O céu se vestia de um cintilante lilás avermelhado, que pintor algum poderia reproduzir. Então tudo em volta estava dourado: ruas, árvores, casas, a igreja da Imaculada, até o negro asfalto minorou a sua brandura para sorrir com o amanhecer. Foi aí que eu a vi. Da minúscula rachadura do piso de cimento, brotou uma flor. Não tinha 10 cm, nem folhas, apenas quatro pétalas rochas.

Nesse mesmo momento nascia Janaina, na maternidade do Hospital Nossa Senhora das graças. Um quilo e seiscentas gramas. Parto natural, embora prematuro, nascera com saúde, embora miudinha, a mãe - Dona Josení - tinha bastante leite e nem uma roupa, para dar ao bebê. Na hora de preencher o formulário de baixa na maternidade o campo de endereço ficou vazio, pois a enfermeira teve muita dificuldade em assimilar o fato de que assim que tivessem alta do hospital, a pequena Janaina e sua mãe voltariam para debaixo da ponte.

A vida não desiste. Da minúscula rachadura no concreto do estacionamento brota uma flor, sem se importar se nesse mesmo dia um motorista passará com o carro por cima. Janaina nasceu no hospital, mas poderia ter sido debaixo da ponte, onde sua família espera por ela. Sem perguntar se terá um amanhã.

Entre Canoas e Porto Alegre há um conjunto de pontes, onde cruza a BR 116, o metro e mais as avenidas locais. Milhares de veículos e pessoas transitam sobre essas pontes diariamente. A vista do Rio Gravataí é desoladora, basta ficar uma semana sem chover para o rio se tornar preto como um pinche. Já está praticamente impossível navegar de tanto o lixo no leito e na superfície. Isso para não falar no mau cheiro.

A realidade supera a imaginação: aqui bem pertinho tem uma ponte, onde mora gente. Depois que conseguimos assimilar essa dose alopática, começamos a visitar a ponte. Conhecemos lá gente no mínimo interessante. Gente muito forte, que aguenta muito mais do que nós poderíamos suportar. Gente como o Cristiano, pai da Janaina, que chegou de Florianópolis, com a esposa grávida e dois filhos.

Em Florianópolis vendia milho na praia, no inverno, para não passar fome, vendia pedra. O que um pai não faz para dar de comer aos filhos? Coisas que não entendemos, ou porque não somos pais, ou porque nunca passamos fome. Como tinha muita briga de quadrilha e o medo era grande, resolveram abandonar tudo e fugir. De carona em carona chegaram a Canoas, depois de três dias no abrigo público que é o máximo que prefeitura oferece, a ponte foi à alternativa.

"Por pouco tempo ainda", diz o Cristiano, com a carrocinha que ganhou da Igreja, ta catando papel, e com a ajuda de Deus, quando Dona Joseni vier, com a Janaina para casa, eles já estarão "bem acomodados" num barraco encima do dique, porque a "vida não desiste"!

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